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Além de mãe, avó e árvore, sou uma mulher que escreve

  • sandraseabramoreira
  • 13 de dez. de 2021
  • 2 min de leitura



Foto de Paulo Evaristo



A escrita não me cura de nada, ela me dá prazer, e é o prazer que me salva. Na pandemia eu travei na escrita ficcional. O sentimento de urgência me emudeceu, a preocupação de mãe, avó, amante e amiga prevaleceu. A opressão, as doenças, as mortes... não é possível criar porque todo o esforço se converte na manutenção da saúde e da mente sã. E já antes, com a hecatombe fascista, as frustrações começavam a embotar a criatividade. Mas hoje fui pagar boletos. Vasculhei as pastas: "Contos" perto de "Contas". Fui aos contos. O último escrito foi em outubro de 2018. Nele, a escrita não me salvou, potencializou dores e frustrações. Por isso parei de escrever, agora entendi. Abaixo, trecho de "Soltem de vez as minhas mãos", a partir do qual toda a criatividade estancou:


... Não há amor em mim, não me peguem pelas mãos. Não quero ser generosa a ponto de esquecer de mim mesma, me engalfinhar em dores alheias e depois mal saber como sair delas. Não quero essas falsas barricadas, solidariedade em bytes, palavras de ordem de gente mimada, acomodada e plugada. Às doze horas ouço os sinos da igreja da Consolação, eles tocam por mim. Às dezoito horas ouço os sinos da igreja da Consolação, eles voltam a tocar por mim. Tocam por mim, que ainda não cumpri destino algum. Mulheres vão resgatando outras mulheres, vão entrelaçando seus destinos, trançando redes de sobrevivência. Onde? Aqui não. Não vejo redes, nem suportes, nem mulheres que me resgatem. Há uma janela denunciando uma altura da qual não se salva quem pular. E lá embaixo há mulheres mais miseráveis do que eu, entre cobertores, sacos plásticos, mendigando, sem que ninguém as resgate. Nos apartamentos, há dezenas de mulheres, trabalhadoras e tristes, muitas; as vejo no elevador todos os dias. Estou só e os sinos tocam por mim porque assim eu quero que seja. Talvez para as mulheres mais miseráveis do que eu também os sinos toquem, mas para elas isso nada significa. Eu devo ao menos desejar que toquem por mim. Para que talvez eu renasça e acredite que algo, seja lá o que for, possa dar alegria e vida a alguém. Não uma falsa alegria. Tampouco dar uma vida a quem não existe mais. Eu não quero inventar o que já foi. Queria inventar um futuro, mas eu não tenho futuro, então inventaria um tempo em que eu não mais estaria. E por qual motivo eu inventaria um tempo em que não estaria nele? Os que virão que inventem seus próprios futuros. Inventem agora, saiam por aí inventando, é urgente. Não digo nada sobre o presente; ele não existe, terá de ser reinventado também, saiam por aí reinventando e soltem minhas mãos, por favor, nem me peçam para pegar na mão de ninguém.

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